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O desaparecimento da família Godard

Já falamos aqui sobre o desaparecimento inexplicável de alguns indivíduos, mas é possível uma família inteira, de quatro pessoas, sumir também? Acidente, assassinato, suicídio. É muito provável que você encontre tudo isso no próximo caso. Provável porque 20 anos depois ninguém conseguiu determinar o que teria de fato acontecido naqueles 6 dias cruciais em que a mãe não foi mais vista e o pai saiu para velejar com os filhos. Dois deles foram declarados mortos pela justiça. E alguns ossos dos outros dois foram encontrados. Mas o que aconteceu com a família Godard?

Modelo do veleiro Nick
Fonte: francebleu.fr

Briefing

O desaparecimento da família Godard envolveu o médico francês Yves Godard, sua segunda esposa Marie e seus dois filhos Camille e Marius em setembro de 1999. Yves e seus filhos alugaram um barco e foram velejar na cidade de Saint-Malo, na Bretanha, alguns dias antes da polícia descobrir vestígios de sangue no carro e na casa da família. 

 

Ao longo dos anos seguintes vários objetos foram encontrados na costa norte da Bretanha ou em alto mar: um bote salva-vidas, documentos de identidade, cartões de crédito, o crânio de uma das crianças e, finalmente, os ossos do próprio Godard.

A vida da família Godard

Yves Godard, de 44 anos, era um clínico geral especializado em terapia de acupuntura. Seu consultório ficava na cidade de Caen, na Normandia, França. Ele estava em seu segundo casamento, com Marie-France, de 44 anos, e eles tinham dois filhos pequenos – Camille, de 6 anos, e Marius, de 4 anos. 
Yves Godard
Fonte: lamanchelibre.fr
Segundo amigos do casal, eles pareciam se dar muito bem, mas depois do casamento eles foram lentamente se afastando dos velhos amigos, com a desculpa de que queriam passar mais tempo a dois. A verdade era que o casal estava enfrentando muitos problemas financeiros e conjugais.

 

Yves teve sua licença médica suspensa por três meses em 1996 por “prática farmacêutica ilegal”. Ele foi acusado de prescrever medicamentos não permitidos na França e fazer tratamentos experimentais com seus pacientes. Ele estava ficando cada vez mais interessado em hipnose, terapia espiritual e até reencarnação. Yves tentou encontrar apoio entre outros médicos da região, mas sua atitude – descrita como presunçosa e arrogante – não ajudou sua causa.

 

Ele acabou tendo que deixar o consultório médico que mantinha com um sócio e teve que montar o próprio. Yves convidou Marie para trabalhar para ele três dias por semana como secretária, o que ela aceitou de má vontade. Ela não trabalhava desde antes de Camille nascer, optando por se tornar uma mãe em tempo integral.
Placa do consultório de Yves Godard
Fonte: la-croix.com
Essa virada na vida profissional de Yves levou-o a ingressar a Confederação de Defesa dos Negócios e Artesãos. Esta organização era conhecida por ter diretores que abertamente incentivavam seus membros a não pagar contribuições sociais ao governo e a sonegar impostos. Isso veio a calhar para Yves, já que ele não pagava contribuições sociais há mais de três anos.

 

Ele devia ao governo francês mais de 2 milhões de francos (equivalente a 300.000 mil euros) em impostos atrasados – e a cada dois dias eles enviavam um oficial de justiça para lembrar Yves de sua dívida. 

 

Enquanto isso, Marie também não estava bem. Ela estava estressada por causa das dívidas e muito deprimida. Marie começou um tratamento com um psicólogo especializado em hipnose para tratar sua depressão. Ela falava com ele sobre os problemas financeiros, o marido (que lhe dava cada vez menos atenção) e suas insatisfações sexuais, tendo inclusive tentado seduzir o psicólogo. Marie mantinha um diário que foi encontrado pela polícia e que continha várias páginas dedicadas a suas fantasias sexuais com seu psicólogo, bem como a sua atual infelicidade conjugal.

Marie Godard
Fonte: france3-regions.francetvinfo.fr

O desaparecimento

30 de agosto de 1999 foi um dia normal para Yves Godard. Ele atendeu pacientes o dia todo antes de fechar o consultório e voltar para casa. Os pacientes que se consultaram com ele no final de agosto afirmaram mais tarde que tudo “parecia estar bem” e que ele estava agindo normalmente, como sempre agia, durante as consultas. Dia 31, Yves cancelou todas as consultas médicas, deixou seus negócios em ordem e levou seus filhos para pescar. 
Marius e Camille Godard
Fonte: Skynet
Em 1º de setembro, Yves saiu de casa por volta das 8h30 e dirigiu para a cidade de Saint Malo com seus dois filhos. Uma das vizinhas da família Godard foi falar com ele quando viu o carro da família saindo. Yves lhe disse que eles iam viajar por alguns dias, o que a deixou surpresa, já que ele não deixou as chaves de casa para ela cuidar do gato, como sempre fazia quando a família viajava.

 

Quando chegaram a Saint Malo, por volta das 10h30, eles foram até o clube de vela da cidade para embarcarem num veleiro que já havia sido reservado por Yves duas semanas antes, um Sun Odyssey 30 chamado de Nick. O veleiro tinha 9 metros (30 pés) de comprimento e podia acomodar até 6 pessoas.

 

Yves disse ao dono do barco que ele e as crianças planejavam navegar pela costa da França e que voltariam em 5 de setembro. Como ele era um marinheiro experiente, verificou todo o equipamento de navegação cuidadosamente, enquanto as crianças dormiam na doca. Os três então foram até um supermercado local, onde Yves comprou um estoque de sacos plásticos, um esfregão, produtos de limpeza e duas garrafas de uísque. Ele deixou o carro, uma minivan da Volkswagen, no estacionamento do porto.
Porto de Saint Malo
Fonte: Paris City Vision
Era um lindo dia de fim de verão, a água estava calma. A maré naquele dia não permitiu que eles saíssem até pelo menos duas da tarde e nunca ficou claro exatamente a que horas eles zarparam.

 

Em 2 de setembro, o barco foi parado por agentes aduaneiros que percorriam a costa para uma busca de rotina. Eles notaram uma criança pequena dormindo, e também notaram que o motor do veleiro estava funcionando, apesar da quantidade de vento ser mais do que suficiente para velejar naquele dia. Um dos agentes da alfândega teve a impressão de que havia algo errado no barco e verificou sua história com o dono do Nick em Saint Malo, que confirmou tudo que Yves havia falado para os policiais. Então eles o deixaram partir.

 

Yves e as crianças parecem ter velejado pela costa da Bretanha nos próximos dias. Várias testemunhas relataram ter visto o barco na área entre 2 e 5 de setembro. Uma mulher que administrava uma barraca de comida no porto de Bréhec lembrou-se de vender waffles para Yves e seus dois filhos no dia 3 de setembro.
 
Em 5 de setembro, o dia em que Yves, as crianças e o veleiro deveriam ter retornado a Saint Malo, um bote inflável pertencente ao Nick foi encontrado por um barco de pesca a cerca de 55 quilômetros de Ilha Batz, na costa da Bretanha. Dentro do bote havia uma capa de chuva e um talão de cheques, com o nome de Yves Godard.
Mapa da costa da Bretanha mostrando o porto de Bréhec e a Ilha de Batz
Fonte: Google Maps
A guarda costeira foi imediatamente informada. Nenhuma chamada de SOS foi feita no rádio do Nick. Eles tentaram em vão alcançar o Nick pelo rádio, mas só receberam silêncio em retorno. O dono do Nick também ficou preocupado quando Yves, as crianças e o veleiro não voltaram a Saint Malo em 5 de setembro, como planejado.

As investigações

Em 7 de setembro a polícia francesa começou a entender que algo ruim devia ter acontecido com a família Godard. Mas eles não imaginavam que poderia ser algo além de um acidente de barco. Eles enviaram um avião do exército para verificar a costa da Bretanha, na esperança de que o Nick fosse visto.

 

Nesse mesmo dia, a polícia chegou ao porto de Saint Malo e inspecionou o carro de Yves Godard. Dentro do carro, eles encontraram doses pesadas de morfina e uma grande quantidade de sangue.
Casa da Família Godard
Fonte: francebleu.fr
Em 8 de setembro, após obter um mandado, os investigadores foram à casa da família Godard. Eles entraram no local e logo viram um bilhete na mesa da cozinha, com a letra de Yves: “Vamos velejar por alguns dias, voltaremos no domingo. Marie e Yves.” A geladeira estava totalmente abastecida, a casa estava arrumada e as mochilas das crianças perto da porta. Eles subiram as escadas. Havia sangue na parede do quarto do casal que alguém parecia ter tentado limpar apressadamente. Os policiais se dirigiram até a cama e viraram o colchão, onde encontraram uma grande mancha de sangue que penetrou em quase metade do colchão. Não havia sangue ou qualquer coisa anormal nos quartos de Camille e Marius.

 

Os investigadores também checaram os banheiros, e em um deles encontraram sangue na pia e uma toalha ensanguentada. Ao descerem a escada eles notaram gotas de sangue ao longo dela. No andar de baixo, eles fizeram uma investigação mais completa e encontram um cobertor com vestígios de sangue na máquina de lavar.

 

Em 10 de setembro, foi aberta uma investigação de homicídio e um mandado de prisão internacional contra Yves Godard foi tornado público.
Mandado de prisão da Interpol
Fonte: Huffington Post
Em 16 de setembro, amostras de sangue colhidas no carro e na casa de Godard foram identificadas como sendo a de Marie-France Godard – que ninguém via desde o dia 31 de agosto.

Os desenvolvimentos do caso

Os investigadores inspecionaram a agenda de Yves Godard e notaram que ele marcou consultas médicas nos dias 1, 2 e 3 de setembro – apesar de ter alugado o Nick em 17 de agosto. Ele acabou cancelando as consultas em 31 de agosto, mas a polícia não conseguiu entender porque ele alugou o barco para essas datas, mas marcou consultas para o mesmo período.

 

Ainda mais estranho: quando os investigadores examinaram sua agenda, eles descobriram que os pacientes que estavam marcados eram pacientes existentes que não haviam marcado consultas para estas datas ou pacientes com nomes inventados. Em outras palavras, Yves havia falsificado toda sua agenda do início de setembro. Os compromissos estavam escritos à mão, então os policiais constataram que não foi Marie quem fez as anotações, e sim o próprio Yves.

 

Em 16 de setembro, um barco de turismo encontrou um colete salva-vidas na costa da ilha de Guernsey, no Canal da Mancha. Guernsey, embora fisicamente mais próximo da costa francesa, pertence ao Reino Unido. Foi determinado que o colete salva-vidas pertencia ao Nick. Uma semana depois, outro bote salva vidas inflável foi encontrado, desta vez em Lyme Bay, no condado de Dorset, Inglaterra. Também foi determinado que o bote veio do Nick. 
Mapa mostrando a costa da Bretanha e a ilha de Guernsey
Fonte: Google Maps
Segundo especialistas científicos, dadas as correntes oceânicas, nenhum desses itens poderia ter sido levado pela água até onde eles foram encontrados. Além disso, o dispositivo usado para manter a balsa inflada havia sido arrancado. E segundo o fabricante, o bote só poderia permanecer inflado por até 72 horas sem este dispositivo.
 
Em 14 de outubro, o proprietário de um hotel na Ilha de Man, localizada no mar da Irlanda e muito longe da costa da França, procurou a polícia e disse que estava absolutamente convencido de que Yves Godard e seus filhos ficaram no hotel de 7 a 14 de setembro.

 

Em 2 de outubro a polícia recebeu uma carta anônima informando que Yves Godard e seus filhos estavam na Ilha de Man. A carta tinha duas frases: “O doutor Godard está vivo, no mar da Irlanda, na ilha de Man. Levem isso a sério.” Outras testemunhas na ilha disseram que também viram o trio e que a garotinha era loira (como Camille) e estava pedindo pela mãe. A Ilha de Man é conhecida por ser um paraíso fiscal. E Yves Godard tinha uma conta bancária lá.
Ilha de Man
Fonte: Google Maps
Em 16 de janeiro de 2000 – 4 meses após a desaparecimento da família Godard – um barco de pesca na costa da ilha de Batz, na Bretanha, pegou em sua rede uma grande sacola de lona. Lá dentro, pertences de toda a família Godard: roupas infantis, biquíni, talões de cheques, carteira de motorista de Yves, a bolsa da Marie com todo o seu conteúdo, binóculos e um martelo.

 

Em 6 de junho de 2000 – 10 meses após a desaparecimento da família Godard – um barco de pesca na baía de Saint Brieuc, também na Bretanha, puxou um fragmento de crânio em suas redes. Por alguma razão, eles o jogaram de volta no oceano. 4 horas depois, eles puxaram um crânio humano inteiro e decidiram guardá-lo. O teste de DNA conclui que é o crânio de Camille Godard, de 6 anos. A análise científica concluiu que o crânio estava no mar desde fevereiro de 2000. Isso parecia dar crédito a uma das principais teorias de que Yves e seus filhos sofreram um acidente de barco – acidental ou não – e que todos a bordo haviam morrido. Essa área (que era a mesma em que a alfândega havia parado a família Godard no Nick em 2 de setembro de 1999) foi então minuciosamente examinada com um dispositivo de sonar emprestado pelos fuzileiros navais franceses – sem sucesso. Nenhum outro osso foi encontrado, nem o veleiro Nick. Nesse ponto, apenas uma coisa estava clara: Camille estava morta.
Baía de Saint Brieuc
Fonte: Brittany Tourism
Em 1º de fevereiro de 2001, na praia de Chapelle, na ilha principal do arquipélago de Ébihens (na costa da Bretanha), um turista encontrou a carteira profissional de Yves Godard. Em 22 de fevereiro, um cartão de crédito pertencente a Yves Godard foi encontrado na mesma praia. Em 24 de maio, outro cartão de crédito foi encontrado. Um juiz instruiu os investigadores a percorrerem a praia com um pente fino e os fuzileiros navais mais uma vez usaram a máquina de sonar para vasculhar o fundo do oceano ao redor do arquipélago e não encontraram nada. No dia 3 de junho, no entanto, outro cartão de crédito foi encontrado por um mergulhador ao longo da costa. Os investigadores estavam convencidos de que Yves Godard deveria ter parado nesta praia e esvaziado o conteúdo de sua carteira. A praia foi novamente investigada e os policiais estavam certos de que não havia mais nada. No entanto, em 31 de julho, um quarto cartão foi encontrado na mesma praia, desta vez um cartão de seguro de saúde. Todos os cartões foram enviados para um laboratório e os resultados foram surpreendentes: os cartões não passaram muito tempo na água. Não era possível que eles estivessem lá desde setembro de 1999, o que levou investigadores a acreditarem que alguém os colocou lá, um a um, ao longo de 2001. Investigadores e o advogado da família de Marie Godard acreditam que um cúmplice estava trabalhando com Yves, querendo que as pessoas acreditassem em uma morte acidental.
Buscas na praia após os cartões serem encontrados
Fonte: RTL
Em 13 de setembro de 2006, um fêmur e uma tíbia foram encontrados na trincheira de Casquet, 70 quilômetros ao norte da cidade de Roscoff na Bretanha. Foi determinado que eles pertenciam a Yves Godard. O equipamento do sonar foi enviado à área sem sucesso – nenhum outro osso foi encontrado, assim como o veleiro Nick.

 

Isso confirmaria a morte de Yves Godard. Marie e Marius nunca foram encontrados.

 

Em 19 de janeiro de 2007, o prefeito de Lingèvres, Christian Marie, recebeu uma carta anônima com um mapa muito detalhado do cemitério de Lingèvres na Normandia. A nota manuscrita incluía sete linhas e sugeria que os restos mortais de Marie podiam ser encontrados em um local específico do cemitério. A polícia levou a carta a sério, pois o cemitério ficava a apenas 3 quilômetros da casa de Yves. E o local citado na carta era uma parte do cemitério onde geralmente não haveria ossos. Eles cavaram e encontraram uma ossada, mas esta foi testada e não pertencia à Marie.
Buscas pelos ossos de Marie
Fonte: Le Télegramme
Em 14 de dezembro de 2008, outro cartão de crédito pertencente a Yves Godard foi encontrado em bom estado na praia de Chapelle.

 

Marie e Marius ainda estão desaparecidos e supostamente faleceram. Em 7 de setembro de 2015, os tribunais os declararam oficialmente mortos. Nenhum outro osso pertencente a Yves e Camille foi encontrado.

 

Em 31 de janeiro de 2018, um pequeno crânio foi encontrado em uma praia na Bretanha. Muitas pessoas pensaram imediatamente que poderia ser de Marius Godard, mas o teste de DNA provou o contrário. O crânio possuía DNA feminino, mas não se sabe a quem ele pertenceu.
O crânio que acreditava-se ser de Marius
Fonte: francesoir.fr
O que aconteceu com a família Godard? 
Yves matou sua esposa? 
Onde está o corpo? 
Depois de matar a esposa ele partiu para uma missão de assassinato-suicídio no mar? 
É tão simples assim? 
Ele tinha originalmente planejado levar os filhos com ele? 
E os cartões que ficavam aparecendo na mesma praia? 
Ele tinha um cúmplice? 
Onde está o veleiro Nick?

Tantas perguntas, tão poucas respostas.

Este post tem 5 comentários

  1. Diego Scariot

    Teu blog é um dos melhores que já acompanhei. Continue com esse trabalho. Realmente muito bom.

  2. Carol

    Mais uma história super interessante e bem narrada. Parabéns, Marcela! 🙂

  3. Excelente caso. Me parece um assassinato-suicídio.

    Mas se a intenção era essa desse o início, não ia precisar de toda preparação para despistar. Esquisito

  4. Eu acho que teve uma premeditação ao assassinar a esposa por conta da agenda forjada. Ou em ocultar o cadáver.
    Mas é possível que alguém dessa família ainda esteja vivo e jogando os cartões na praia, pra não deixar o assunto morrer e tentar ter alguma justiça

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