You are currently viewing Ottavio Bottecchia – O que realmente matou esse campeão do Tour de France?
Fonte: bottecchia.com

Ottavio Bottecchia – O que realmente matou esse campeão do Tour de France?

O fim macabro da lenda do ciclismo italiano permanece obscuro. Sua morte repentina aos 32 anos provocou várias teorias da conspiração e explicações diferentes. Sua vida acabou tendo um final complexo, mas o início foi muito simples.

A juventude e a guerra

Os camponeses italianos Francesco e Elena Bottecchia já tinham sete filhos quando um oitavo nasceu em 1º de agosto de 1894. Sem escolherem o nome, chamavam o novo bebê de Ottavio – “oitavo” em italiano. Ele teve uma infância difícil, nunca teve a chance de ir à escola e começou a trabalhar aos 12 anos.

Foto atual da casa onde Bottecchia viveu
Fonte: Biciveneto Journal

Ottavio nunca deu a entender que queria ser ciclista. Então veio a Primeira Grande Guerra, na qual a Itália entrou em maio de 1915, juntando-se aos aliados britânicos, franceses e russos para combater o Império Austro-Húngaro e a Alemanha. A Itália, que era uma nação unificada há menos de 60 anos, estava terrivelmente mal equipada para o combate, e até os cavalos da família Bottecchia foram requisitados pelo exército.

Ottavio com seu uniforme na guerra
Fonte: Bike Race Info

Ottavio e seu irmão mais velho Giovanni já haviam se juntado à unidade de bersaglieri (ou “atiradores de elite”) do exército. Foi aí que ele descobriu que era um ciclista forte e com muito potencial, apesar de ter que usar uma bicicleta dobrável que tinha que carregar nas costas junto com seu rifle e sua mochila. Ele muitas vezes carregava mensagens através das linhas inimigas de bicicleta e em duas ocasiões foi capturado pelo inimigo. Mas nas duas vezes ele conseguiu escapar – usando sua bicicleta.

No auge da guerra, em novembro de 1917, quando os austríacos ameaçavam dominar os italianos, Ottavio carregava uma metralhadora pesada no ombro e pedalava furiosamente sua bicicleta para conseguir uma posição estratégica na vila de Lestans. Ele pedalava pelas montanhas, encontrava um bom ponto para atirar e quando era descoberto pelos inimigos montava em sua bicicleta e desaparecia rapidamente. A citação na medalha de bronze de Valor Militar, que ele recebeu mais tarde, dizia: “Com calma e ousadia, sob violento fogo inimigo, ele disparou muito eficazmente com sua metralhadora, causando sérias perdas aos oponentes e impedindo seu avanço. Forçado várias vezes a recuar, ele voltou com sua arma a cada vez para abrir fogo contra o inimigo”.

Durante a guerra, carregando a bicicleta nas costas
Fonte: bikedream.it

Os Aliados finalmente derrotaram os austríacos um ano depois na Batalha de Vittorio Veneto, a poucos quilômetros da casa da família Bottecchia. A guerra terminou, mas depois de ser desmobilizado, Ottavio, então com 24 anos, lutou para encontrar trabalho. Ele conseguiu um emprego como pedreiro na França, que precisava desesperadamente de trabalhadores para ajudar na sua reconstrução.

O início da carreira de ciclista

Ele logo conseguiu voltar para a Itália e resolveu tentar uma carreira no ciclismo. Ottavio ingressou no clube de ciclismo Internazionale Pordenone, e estreou no início de 1920 em uma pequena competição. Ele não teve um bom resultado, mas em sua próxima corrida ficou em segundo atrás somente de Alfonso Piccin, que se tornaria o seu melhor amigo. Foi como ciclista profissional que Ottavio aprendeu a ler, ensinado por Alfonso. Juntos, eles liam os jornais esportivos, estudavam e começaram a simpatizar com o socialismo, e liam também panfletos antifascistas clandestinos que protestavam contra o governo de Benito Mussolini, que estava se instaurando no país. 

Ottavio pedalando
Fonte: 100 Tours 100 Tales

Em novembro de 1920, Ottavio se casou com sua vizinha Caterina. A vida parecia boa. O primeiro filho do casal, uma menina chamada Elena, chegaria em setembro seguinte; ele continuava seu trabalho como pedreiro; e estava gostando cada vez mais dos treinos e corridas. Em 1921, ele venceu sete corridas e seus sucessos resultaram em uma oferta para tornar-se profissional e receber uma bolsa mensal de 150 liras (cerca de 600 reais na moeda de hoje). Mas essa primeira experiência como profissional, no entanto, teve vida curta porque sua filha de sete meses morreu de difteria e Ottavio decidiu que precisava de um tempo para focar em sua família. O casal teve mais dois filhos nos próximos dois anos, mas ainda no fim de 1922 Ottavio resolveu voltar a treinar e retomou as corridas no final do verão.

O vencedor do Tour de 1924 com a esposa
Fonte: capovelo.com

Em 1923 Ottavio conseguiu um quinto lugar na competição mais importante do país, o Giro d’Italia, pedalando sem equipe. E enquanto o Giro de 1923 acontecia, o maior piloto francês da época, Henri Pélissier estava negociando a formação de uma nova equipe com a empresa Automoto, uma fabricante francesa de bicicletas que também vendia seus produtos na Itália. Cartas foram enviadas por correio a quatro ciclistas italianos, incluindo o pouco conhecido Ottavio Bottecchia, convidando-os para se juntarem à equipe.

Tour de France

Apenas Ottavio entre os quatro italianos apareceu na sede da Automoto em Paris após uma árdua viagem de trem. Ele teve um começo sem precedentes para um novato no Tour de France, alcançando os primeiros ciclistas logo na etapa de abertura e chegando em segundo lugar. Os franceses ficaram emocionados com o fato de um francês finalmente ter vencido o Tour. O vencedor, Henri Pélissier, disse à imprensa: “Ottavio Bottecchia vai me suceder no próximo ano” e ele não estava errado.

Ottavio com a camisa amarela
Fonte: bottecchia.com

O desempenho de Ottavio lhe rendeu um contrato de longo prazo com a Automoto; e o jornal italiano Gazzetta dello Sport ficou tão emocionado que pediu aos leitores que contribuíssem com uma lira para criar um fundo para Bottecchia e recebeu 60.000 respostas. O ditador Benito Mussolini foi a primeira pessoa a contribuir com o fundo, interessado em fazer de Ottavio, a nova celebridade esportiva italiana, o garoto propaganda de seu governo. Aliviado de preocupações financeiras, Ottavio agora podia se concentrar inteiramente em sua carreira de ciclista.

No Tour de France de 1924 Henri Pélissier abandonou a corrida na terceira etapa, juntamente com seu irmão Francis. Eles deram uma entrevista falando sobre as terríveis condições que os ciclistas do Tour tinham de suportar. A matéria foi capa de jornal sob o título Les Forçats de la Route (“Escravos da estrada”). As condições frequentemente desumanas enfrentadas pelos ciclistas não incomodaram Ottavio, que já tinha enfrentado muito pior na Primeira Guerra. O italiano conquistou o primeiro lugar no Tour de 1924, sem perder a liderança em nenhum momento.

Propaganda da Automato
Fonte: Pinterest

Primeiro italiano a vencer o Tour, Ottavio repetiu seu sucesso em 1925, e parecia que ele continuaria sua bem-sucedida campanha em 1926, mas Ottavio não estava pedalando com o mesmo entusiasmo dos anos anteriores. O clima horrendo não colaborou nem um pouco, caía uma chuva torrencial e fazia muito frio nas montanhas, o que obrigou mais de 20 ciclistas a deixarem a competição, incluindo Ottavio, que abandonou o Tour, chorando.

Ottavio subindo uma montanha
Fonte: Wikipedia
O início do fim

Ottavio permaneceu na França para continuar treinando e participou de pequenas competições naquele ano. Em maio de 1927 ele voltou a focar seu treinamento no Tour de France daquele ano, mas logo teve que retornar para casa, porque seu irmão Giovanni Bottecchia foi atropelado e morreu em 28 de maio.

Ele chegou na Itália para o funeral querendo saber os detalhes da morte de seu irmão. Ottavio descobriu que o carro que atropelou seu irmão era de propriedade do empresário Franco Marinotti, um amigo de Benito Mussolini. Foi relatado que o industrial se ofereceu para resolver o incidente com um pagamento de 100.000 liras (equivalente a R$ 420.000,00 hoje), mas Ottavio se sentiu insultado pela oferta.

A morte de Ottavio
A estrada onde os dois irmãos Bottecchia faleceram
Fonte: Tripadvisor

Na manhã do dia 3 de junho, Ottavio saiu de casa às 4h30 da manhã para passar o dia treinando. Ele queria alguma companhia, mas seu amigo Alfonso Piccin lhe disse que tinha outros planos e não podia treinar naquele dia. Então Ottavio partiu sozinho.

Por volta das 13h, na mesma estrada onde seu irmão havia sido atropelado e morrido 6 dias antes, algo aconteceu. A história oficial (escrita em sua lápide) é que Ottavio se sentiu mal por causa do calor e quando o sol bateu forte em sua vista ele se desequilibrou e caiu. Ele foi encontrado por um fazendeiro com uma fratura na base do crânio, que estava quase completamente esmagado e com um buraco enorme, quebrou a clavícula direita e ficou com vários cortes e contusões no lado direito do corpo.

Monumento no local exato onde Ottavio foi encontrado Fonte: Tripadvisor

A bicicleta, no entanto, não estava danificada, e sim encostada na beira da estrada – o que parecia descartar um possível acidente. Também não havia marcas de derrapagem para sugerir que um carro o havia forçado a sair da estrada e nenhuma marca nos pedais ou fita do guidão para sugerir que ele havia perdido o controle.

Os camponeses da região levaram Ottavio a Peónis e o deitaram em uma mesa na estalagem, onde o padre local, Dante Nigris, fez os últimos ritos. Ele foi transportado para o hospital e faleceu 12 dias depois. O funeral de Ottavio contou com a presença dos irmãos Pélissier e de alguns de seus companheiros de equipe belgas.

As teorias sobre a morte de Ottavio

Existem muitas teorias sobre as circunstâncias de sua morte. O inquérito foi rapidamente encerrado e a justiça determinou que a morte havia sido acidental causada por insolação. O calor havia sido demais para ele, disseram. Mas isso não parecia provável para um homem que havia pedalado e vencido o Tour de France duas vezes. Acima de tudo, isso não explicava o buraco que foi aberto em sua cabeça. Talvez as coisas tenham sido arranjadas dessa forma porque Ottavio possuía um seguro de vida que cobria somente acidentes, e o veredicto de insolação era mais adequado à sua esposa.

No entanto, a teoria que faz mais sentido é a de que fascistas atacaram Ottavio e esmagaram seu crânio por suas opiniões francas sobre o socialismo ou porque a morte de seu irmão estava sendo conectada a uma autoridade fascista. Isso explicaria porque a bicicleta não foi danificada. Alguns meses após a morte de Ottavio, o jornalista Giulio Crosti descobriu que alguns milicianos apoiadores de Mussolini na região haviam intimidado o legista e o sargento da polícia local e exigido que a morte fosse reportada como um acidente. Ele também afirmou ter descoberto que a polícia nunca acreditou na alegação de insolação, mas o comandante fascista Gino Caserotti disse-lhes para parar de investigar.

O livro publicado por Giulio Crosti com suas descobertas
Fonte: BiciClub

É provável que Ottavio tenha sido assassinado por razões políticas. A Itália estava no meio de uma ditadura. Benito Mussolini e o Partido Fascista queriam muito o apoio do grande herói esportivo da Itália. Mussolini se achava no direito de usar a imagem de Ottavio em suas propagandas, afinal ele foi o primeiro a contribuir ao seu fundo de apoio para que ele pudesse se tornar um ciclista profissional.

É bem verdade que Ottavio nunca tomou posição pública contra Mussolini, mas também não manteve suas simpatias socialistas em segredo. Na Itália da década de 1920, os atletas eram vistos como símbolos do poder do estado, e a grande estrela do ciclismo ser subversivo seria razão suficiente para que alguns partidários apaixonados de Mussolini o odiassem – e até matassem.

Não há muitas evidências de fato de que os fascistas tenham matado Ottavio, mas as outras explicações não fazem muito mais sentido. Poucos anos mais tarde, o fazendeiro que o encontrou caído na estrada confessou em seu leito de morte: “Vi um homem comendo minhas uvas. Ele empurrou as videiras e as danificou. Joguei uma pedra para assustá-lo, mas o atingiu no rosto. Corri até ele e percebi quem era. Entrei em pânico e o arrastei para a beira da estrada e o deixei. Deus me perdoe!”

Essa é a versão que você lerá em muitos livros a respeito de Ottavio Bottecchia, mas é um tanto absurda. É preciso uma pedra enorme e aplicação de muita força para quebrar o crânio de um homem, e o destruir quase que completamente. E não se consegue jogar uma pedra muito grande longe demais para fazer isso, então o fazendeiro estaria perto o suficiente para Ottavio gritar ou até para o fazendeiro reconhecê-lo. Se você encontrasse um herói nacional, o vencedor do Tour de France, cortando algumas de suas uvas, o que você faria? Arremessaria uma pedra ou apertaria sua mão?

Ottavio Bottecchia
Fonte: Wikipedia

Além disso, se você jogasse uma pedra na direção de um vinhedo, causaria tanto dano quanto Ottavio deveria estar causando arrancando algumas uvas de um cacho. Mas o mais estranho é que quase todo italiano sabe que uvas não estão maduras até meados de setembro. E mesmo que ele não soubesse disso, assim que comesse a primeira ele iria perceber que ela estava muito azeda. Ninguém iria parar embaixo de uma videira e ficar comendo uvas azedas.

Já no fim dos anos 1940, um homem que estava morrendo após levar uma série de facadas em Nova York fez uma confissão. Ele era italiano e havia sido contratado para assassinar Ottavio Bottecchia em 1927. Mas por quem? E por que? O nome dado por ele, de seu suposto “padrinho”, nunca foi ligado a ninguém, vivo ou morto. 

Também dizem que Don Dantė Nigris, o sacerdote que concedeu os últimos ritos à Ottavio, atribuiu sua morte aos fascistas descontentes com suas inclinações mais liberais, e que em seu leito de morte em 1973 ele confidenciou ao seu sucessor: “Esses rumores bastante insípidos de acidente são todos infundados; as feridas de Bottecchia foram devidas a uma luta por seu antifascismo”.

Conclusão

É muito provável que ninguém nunca saiba de fato porque o primeiro italiano a vencer o Tour de France sofreu uma morte tão vil. A morte de Ottavio Bottecchia obscurece sua vida, o que é uma pena, pois ele foi um dos maiores ciclistas do século XX e um herói por manter suas crenças socialistas quando fazê-lo era tão perigoso.

Fonte: Tripadvisor

Referências:
The Velo Orange
Reddit
Vice
Peloton Magazine
Outside

Deixe um comentário